sábado, 3 de agosto de 2019

Biografia do Prof. Horácio Kneese de Mello



      Horácio Kneese de Mello nasceu em São Paulo em 3 de abril de 1914. Foi o sexto de sete filhos em sua família. Descreveu seu pai como um liberal de sua época, que entendia os problemas da então juventude, e que se casou já em idade madura. E que certas decisões na família eram tomadas pelo pai. Diz ele que, como não havia rádio ou televisão, cada filho tinha que aprender a tocar um instrumento. A ele coube o violino, que ele duramente manteve o estudo por quatro anos com o professor Zacarias Autuori, até que ele convenceu seu pai de que deveria parar.
     Horácio começou seus estudos com uma governanta alemã, Dona Angélica, que morava em sua casa. Quando decidiram levá-lo à escola, foi submetido a ligeiro exame na Escola Americana, que era o curso primário do Mackenzie, onde ele entrou já no terceiro ano. Nessa época, o curso primário regular tinha quatro anos. Nessa escola, especificamente, tinha sete anos. Após esse primário, seguiu o curso ginasial no mesmo local. Essa continuidade no Mackenzie era para quem fosse seguir Engenharia. Ou ainda o curso de Comércio viria logo a seguir ao dito primário. Como seu pai era quem decidia, o primeiro filho homem seguiu engenharia e tornou-se arquiteto. O segundo seguiu comércio, para trabalhar com o pai na casa J. Moreira e Companhia, atacadista de tecidos. O terceiro, que era ele, Horácio, deveria seguir Medicina. Se houvesse mais um filho homem, seguiria advocacia. Assim, Horácio foi transferido para o Liceu Rio Branco, na Rua Maria Antonia, para seguir um curso mais apropriado à Medicina. Por ele mesmo, Horácio teria seguido Engenharia para ser arquiteto, tal qual seu irmão mais velho.
     Desse modo, em 1933, entrou na primeira turma da Escola Paulista de Medicina. Durante o curso médico foi presidente do Centro Acadêmico Pereira Barreto em 1934-1935. Foi fundador e primeiro presidente da Associação dos Ex-Alunos da EPM.   
     Quando Horácio estava no quinto ano do curso médico, em 1937, a EPM se mudou definitivamente para a Vila Clementino. Ele morava na rua Bela Cintra e tinha que pegar dois bondes para chegar à escola, que nessa época ficava naquele “fim de mundo”. Pediu então a seu pai que lhe comprasse uma motocicleta. Em sua turma, só ele e um colega, Luiz Junqueira Lobato, usavam. Refere ter ganho muito tempo de estudo com esse transporte. Era uma moto alemã, DKW, pois não havia fabricação no Brasil.    
     Seu pai tinha uma fazenda no Estado do Rio, onde nasceu, cercada por fazendas de familiares. Nesse ambiente, as pessoas reuniam-se à noite para tocar e cantar. Foi aí que Horácio aprendeu a cantar e tocar violão e cavaquinho. Quando estudava Medicina, tinha um colega de turma, Ramiro de Araújo Filho, que era bom músico e tocava bem piano e violão. Horácio ia à sua casa e cantava acompanhado por piano. Nazaré, esposa de Ramiro, dizia que ele cantava bem e que iria encaminhá-lo a alguém. Na época, a editora de músicas Irmãos Vitale tinha um estúdio no Largo da Sé, onde uma pianista acompanhava e orientava possíveis futuros cantores. Ela chamava-se Naja. Aprovou Horácio como cantor. A partir daí, começou a frequentar esse estúdio semanalmente, onde encontrava três ou quatro rapazes, cantores como ele. Na época, havia em São Paulo apenas uma estação de Rádio, a Rádio Educadora. Aos sábados à tarde Naja fazia lá um programa de uma hora de duração, com a apresentação dos cantores. Ela fazia questão de que o cantor tivesse a letra escrita, para não esquecer. Horácio manteve guardado o caderno em que registrou as músicas: Meu Último Luar, Volta Para o Meu Amor, A Mulher que Ficou na Taça, Amores de Estudante, Serenata. Eles procuravam imitar os famosos, Francisco Alves, Orlando Silva e Sílvio Caldas. Em certa excursão a Belo Horizonte, ele cantou Amores de Estudante em um programa. Em São Paulo, foram surgindo novas estações de rádio. Os irmãos Fontoura, Olavo e Dirceu, fundaram uma na Rua Padre João Manoel, onde ele cantou. Certa vez, Paraguassu (assim, com dois s), cantor profissional, pediu a Naja que lhe enviasse algum de seus pupilos, e ele foi encaminhado à Rádio Cruzeiro do Sul para fazer um teste, onde ele cantou Serenata, de Sílvio Caldas. Ele não soube do resultado, mas também não gostava do modo de Paraguassu cantar. De todos esses cantores, um apenas se profissionalizou.
     Certa vez, Horácio resolveu fazer uma serenata para sua namorada, Lydia, que morava na rua Haddock Lobo, quase esquina com Estados Unidos. Ao lado dessa casa havia um terreno vazio, com algumas árvores. Ele pediu ao Ramiro que o acompanhasse com o violão e este levou junto um violinista, Chico, que tocava à noite em um café no centro da cidade. O pai de Lydia era tido como pessoa brava, antes que ele o conhecesse. Quando estava na segunda música, acenderam-se as luzes da casa e houve uma debandada geral. No dia seguinte Lydia contou-lhe que fizeram uma serenata. Ele revelou tratar-se dele mesmo.
     Com poucos anos de formado foi a Congresso de Cardiologia no Instituto de Cardiologia do México juntamente com Jairo Ramos, quando então seguiam a escola de Frank Wilson, segundo ele, divergente da escola de Louis Katz.
       Com a morte de Lemos Torres em 1942, o Prof. José Barbosa Correa passou a reger a chamada 2ª Clínica Médica. Com a morte de Correa em 1948, o Prof. Horácio de Kneese Mello o substituiu, sendo o primeiro ex-aluno da EPM a se tornar professor da Clínica Médica. Em 1951, com a criação do Departamento de Medicina pelo Prof. Jairo Ramos, foi também criada a Disciplina de Cardiologia, sob a chefia do Prof. Dr. Horácio K. Mello, que mais tarde tornou-se o seu Professor Titular. Ainda em 1951, o Prof. Jairo pediu ao Prof. Horácio que fizesse uma visita às faculdades americanas para trazer noções que pudessem ajudar no desenvolvimento desse departamento. Assim, Horácio e sua família viajaram pelos Estados Unidos em 1952 e 1953 para fazer essas observações. Cumpriu essa missão e retornou. Com a aposentadoria precoce do Prof. Jairo Ramos, em 1965, o Prof. Horácio foi eleito para o cargo de Chefe do Departamento de Medicina[1].   
     Em 1964, Horácio lançou o livro Problemas de Cardiologia. Sobre esse livro, vai a seguir um texto que ele escreveu:
     “Em 1964 lancei, por intermédio do Fundo Editorial Procienx, um pequeno livro intitulado Problemas de Cardiologia. Nele expus ideias que amadureceram ao longo de vinte e cinco anos de exercício da medicina, em contato permanente com professores, estudantes e colegas em geral.”
     “O ponto que sempre enfatizei, inclusive nesse livro, foi a necessidade que tem o médico de encarar o doente como um todo, corpo e espírito. Cito autores que li, como, por exemplo, Carl Binger (The Doctor’s Job, WW Norton & Company, New York, 1945), que diz: ‘a medicina não é e provavelmente nunca será uma engenharia humana’. E mais: ‘É quase tão importante conhecer o tipo de doente que apresenta a doença, como o tipo de doença que o paciente tem’.”
     “Embora citando alguns autores com os quais estou de pleno acordo, procurei escrever um livro muito pessoal. Na sua introdução lê-se: ‘Não sabemos se o conseguimos, mas foi nossa intenção escrever um livro diferente’. E ainda: ‘É um depoimento. Nele procuramos discutir assuntos sobre os quais temos pensado longamente, e sobre os quais achamos ter ideia bem firmada, fruto de contato diário com doentes, estudantes e colegas’.”
     “Para ilustrar meus pontos de vista, descrevo vários casos clínicos. Sempre, naturalmente, por uma questão de ética, não citando nomes ou quaisquer outros elementos que permitissem identificar os pacientes”.
     “Passados alguns meses do lançamento do livro, recebi uma carta que foi para mim muito interessante e agradável, não só porque fazia elogio ao livro como, também, pelo pitoresco do seu final Aqui vai ela: ‘Caro Kneese, li o seu livro e posso responder sua dúvida na introdução. Você conseguiu seu objetivo, sim. Deu ao médico não especializado, que o vai ler, ideias seguras, honestas e simples sobre muita coisa confusa – anticoagulantes, corticosteroides, hipotensores, amigdalectomia, etc. Pôs o seu senso, o seu equilíbrio e experiência contra muita coisa desajustada que vai sendo imposta como ciência, sem mais exame. E, por fim, como ponto alto, lanço o apelo que, mais do que qualquer outro, precisa ser ouvido com urgência – para que o médico volte a ser humano e alcance, de novo, a condição humana de seu doente, e deixe de ser ‘o engenheiro’ em que dados técnicos o vão transformando. Um abraço saudoso e grato do Doente da página 68’.”      
     O Prof. Horácio K. Mello foi Diretor da EPM de 1970 a 1974 e foi eleito Presidente da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina no último ano de sua gestão como Diretor, tendo ficado até 1976. Também foi Presidente da Associação Brasileira de Escolas Médicas.
     O processo de tornar-se Diretor da escola foi complexo. Em 1970, o então Diretor da EPM era o Prof. Nylceo Marques de Castro, que faleceu por morte trágica. Foi interinamente substituído pelo Prof. Horácio K. de Mello. Atendendo às novas disposições legais, a lista tríplice de candidatos a diretor tornou-se lista sêxtupla, sendo que encabeçaram a lista como presidente e vice-presidente o Dr. Horácio K. de Mello e o Dr. Costabile Gallucci, respectivamente, cuja aprovação pelo governo demorou durante quase todo o ano de 1970. Essa fase de interinidade foi difícil e levada a contento pelo Prof. Horácio pela sua capacidade de negociação em alto nível, bem como por seu prestígio e amor ao trabalho, de modo que contornou os problemas com sabedoria e justiça.  
     Ainda em 1970, conforme informações do Dr. Adnan Neser: "foi graças à lucidez do Prof. Horácio que foi formada a primeira Comissão de Ensino e Residência Médica, na própria EPM, presidida pelo Prof. Azarias de Andrade Carvalho, auxiliado pelos Profs. Orestes Barini, Uanandy Andrade e por mim, Adan Neser, que fui designado como secretário da Comissão, com muita honra, como representante do Corpo de Residentes". 
     Em 1972 fez parte da delegação que a AMB enviou a Copenhague em um Congresso sobre Ensino Médico organizado pela Associação Médica Mundial.
      Também foi membro e coordenador da Comissão de Ensino Médico do Ministério da Educação, membro e presidente do Conselho da CAPES, assessor do CNPq, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica.
     Aposentou-se em 1980, e, após isso, foi membro do Conselho Federal de Educação e do Comitê Editorial do CNPq. Foi membro da Academia de Medicina de São Paulo, da Academia Brasileira de Educação, membro honorário da Academia de Medicina do Chile e professor “honoris causa” da Escola Paulista de Enfermagem[2].
     Em 1985 fez uma exposição individual de pintura na Galeria Íbero-Americana de Arte.
     Em 1988 escreveu o livro “Histórias Acontecidas e Outras Histórias”. Nesse livro relata histórias pitorescas de sua vida em geral e profissional, além de contos e anedotas.
     Depreende-se, de um modo geral, que uma das virtudes centrais do Prof. Horácio em sua vida como professor foi a capacidade de encontrar o equilíbrio e a diplomacia entre diferentes grupos, com diferentes interesses, mesmo em situações de conflito.   
     Prof. Dr. Horácio Kneese de Mello faleceu no ano de 1999[3].



[1] Escola Paulista de Medicina – 60 anos de História. Organizado por O. R. Ratto, L. K. Matsumura, H. A. Rothschild. Gráfica Poolprint, 1993.
[2] Mello, H. K. – Histórias Acontecidas e Outras Histórias. Proposta Editorial, 1988.
[3] Nemi, A – Hospital São Paulo/SPDM: Atendimento à Saúde entre o Público e o Privado nos Anos 70 do Século XX in Medicina Saúde e História: Textos Escolhidos e Outros Ensaios. Coleção Medicina, Saúde e História. Organizado por A. Mota e MGSMC Marinho. Casa das Soluções Editora, 2014, pg. 118.