O jornal “O Estado
de São Paulo” publicou em 13 de novembro de 1954, um artigo intitulado “Jubileu
Profissional do Prof. Jairo Ramos” com um texto referente ao discurso do Dr.
Paulo Almeida de Toledo (1909-1990), médico formado na Faculdade de Medicina de
São Paulo em 1932[1].
Ele inicia
comentando que há 25 anos (1929), quando começou contato com a Clínica, a
influência da Literatura sobre a Medicina era grande. Havia grande preocupação artística
e com a oratória, de modo que as aulas eram cheias de floreios, adornadas de
imagens, eventualmente chegando mesmo a certo grau de fantasia. Cita então
Francisco de Castro, Miguel Pereira, Aloysio de Castro, Pereira Barretto, como
médicos e professores de grande cultura geral, literatos, que, assim como seus
discípulos, teriam “exagerado no acessório e esquecido do essencial”. Por outro
lado, ele se refere, e cita, certo texto de Torres Homem, considerado, segundo
ele, o maior clínico brasileiro de todos os tempos, texto esse sem floreios,
que teria sido anterior ao período desses professores. Torres Homem descreveu
minuciosamente o desenvolvimento de determinada patologia do esôfago, sem
apelativos outros de linguagem.
Toledo aponta
então uma grande influência da linguagem médica francesa no fim do século XIX
na maneira de se expressar. Considera que Francisco de Castro, em suas grandes
obras médicas, tenha tido certo equilíbrio, mas com pendor para a preocupação
literária. Cita então esse professor como o maior escritor médico “do passado”
(obras da última década do século XIX). Assim ele apresenta outros exemplos de
linguagem mais floreada, considerando como ponto culminante o médico Prado
Valladares (Antonio), segundo Toledo, em torno de 1917, quando a Faculdade de
Medicina de São Paulo estava no início e ainda faltava um ano para formar sua
primeira turma. Em 1919, Jairo Ramos entraria na Faculdade.
Ainda conforme o
discursante, “o espírito positivo e empreendedor dos homens de São Paulo não se
ajeitava bem à falsa literatura e à meia ciência ‘dourada pelos galões de
eloquência’, exigia ciência objetiva”.
Essa ênfase de
Toledo pode ter sido, em parte, contagiada pelo memorável espírito do Quarto Centenário
da fundação da cidade de São Paulo que ocorreu nesse mesmo ano de 1954. Por
outro lado, tendo ele entrado na Faculdade de Medicina em 1927, foi testemunha
do que acontecia ao seu redor.
Toledo frisa então
que Arnaldo Vieira de Carvalho foi buscar no estrangeiro professores de
formação europeia que trouxessem a objetividade científica buscada. Entre os
tais teria se destacado Alfonso Bovero. O discursante chama então de “espírito
boveriano” um rigor que impregnou inicialmente as cadeiras básicas do curso
médico, depois se estendendo a clínicos e cirurgiões. Esse espírito se
caracterizava por exatidão, um cuidado minucioso e uma nova linguagem, segundo
Toledo, “descarnada e seca”, mas objetiva. Ainda sobre Bovero relata que ele
era um tanto impaciente, eventualmente respondendo de forma grosseira. De qualquer
forma o rigor e a objetividade chegaram à Clínica. Desse modo, teria se
instalado um clima propício ao estudo da Propedêutica Médica. Até então, com
todo o floreio de linguagem valorizado, o exame do paciente era tarefa
considerada secundária que ficava legada a assistentes dos catedráticos. Isso
acontecia de maneira que as aulas magistrais eram magníficas sob o aspecto
doutrinário, mas pouco tinham a ver com o que se tinha encontrado no doente.
Por outro caminho,
o espírito de observação de Laennec teria, de certa forma, passado a Torres
Homem e deste ao Prof. Rocha Faria, que teria formado verdadeira “escola”. Seguidor
de seus preceitos, em 1910, teria chegado à cidade de Avaré, no interior de São
Paulo, conforme diz Toledo, “um jovem médico de atitudes arrogantes, afirmativo
e irreverente que se chamava Álvaro de Lemos Torres”. Em 1913, ele
transferiu-se para São Paulo e passou a ser assistente do Prof. Bovero, tendo
clara preocupação com exatidão anatômica no exercício da clínica médica.
Quando foram
criadas as cadeiras de Clínica no Curso Médico, Lemos Torres começou a
trabalhar na assim chamada “Segunda Medicina de Homens, na Santa Casa,
participando do ensino de Propedêutica sob a chefia de Rubião Meira. Nesse
ambiente, Lemos Torres fez ressurgir a escola de Laennec focada em história e exame
físico minuciosos. Toledo ouviu Lemos Torres referir-se a “examinar sem juízo
preconcebido, fria e minuciosamente, sem permitir que a primeira impressão
perturbasse o espírito crítico. O diagnóstico deve vir depois, como resultado
de uma propedêutica clínica imparcial e completa”.
Conforme Toledo,
Lemos Torres preferia errar, mas tendo feito um exame clínico acurado, do que
acertar o diagnóstico a partir de uma primeira impressão. O triunfo de sua
escola veio de sua propedêutica e de suas convicções, pois não tinha facilidade
expositiva e nem era um grande escritor. Dessa forma, juntaram-se em torno dele
os estudantes chamados por Toledo de “ratos de enfermaria”, entusiasmados com a
Propedêutica, de modo que a melhor escola médica se tornou o leito de
enfermaria.
Nesta altura do
discurso, Toledo diz que, por essa época, se sentia um “sopro de renovação
literária em São Paulo e as velhas formas de literatura se tornaram insuficientes
para exprimir as aspirações dos moços”. Assim, ele citou Mário de Andrade,
Alcântara Machado e Oswald de Andrade como tendo levantado a bandeira da emancipação
do pensamento e da linguagem com destruição das velhas formas consagradas. Essa
tendência libertadora se fez sentir no meio médico.
Entre os que
rodeavam Lemos Torres, com sua obsessão propedêutica, ganhou destaque Jairo
Ramos. Nas palavras de Toledo: “Áspero e irreverente, sem nenhum respeito pelas
opiniões clássicas, com um ímpeto de iconoclasta e uma fé ardente de neófito,
Jairo, pelo vigor da sua personalidade começou a se impor desde logo,
conquistando, ainda recém-formado, um círculo de admiração e de respeito pela
força de suas afirmações”.
No entender de
Toledo, essa irreverência de Jairo, de certa forma impregnada pelo ambiente dos
modernistas, teria sido sua força inicial propulsora de tudo que veio a seguir.
No início, Jairo Ramos não teria nem grande oratória e nem primorosa escrita,
mas sua força estava em suas convicções voltadas para a Propedêutica Médica. Com
o passar dos anos, ele teria desenvolvido uma cultura médica, bem como uma
cultura geral, moderando sua aspereza. Lembra Toledo que Jairo Ramos tornou-se
professor no mesmo momento em que se formou, ainda muito jovem.
Jairo Ramos teria
então passado a seus discípulos o grande interesse pela Propedêutica sem se
aterem a floreios de linguagem ou elocubrações fantasiosas. Nessa linha, ele
desenvolveu vários cursos extra de propedêutica por sistemas, bem como
discussões de casos na enfermaria dos quais Toledo se lembra bem.
Além da correlação
de Jairo Ramos com os modernistas, Toledo também comparou obras da juventude e
da maturidade do escritor Eça de Queiroz, com as obras médicas escritas por Jairo,
bem como suas palestras, dizendo que ele aprimorou sua forma de escrever e de
se expressar com o passar dos anos.
Fonte bibliográfica consultada: Acervo do jornal O Estado de São Paulo.
[1]
Paulo Almeida de Toledo foi médico da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo,
onde, além de atender pacientes, deu cursos de Patologia. Publicou artigos em
jornais sobre assuntos médicos e de Cultura Geral. Em 1966 assumiu a cadeira de
Radiologia na FMUSP e reestruturou esse Departamento. Foi Diretor dessa
Faculdade quando criou o Velório e o Prédio de Administração do Hospital das
Clínicas. Estruturou a Pós-graduação e projetou a criação de laboratórios de
pesquisa médica.
Acessado em http://www.pesquisadores.museu.fm.usp.br/index.php/paulo-de-almeida-toledo;isaar
às 11 horas de 19/07/2022.