A partir de texto de
Magid Yunes
Walter Leser
nasceu em São Paulo aos 15 de novembro de 1909. Cursou o Ginásio do Estado da
Capital e a Faculdade de Medicina de São Paulo, pela qual se formou em 1933 com
a tese “Contribuição para um estudo dos métodos estatísticos aplicáveis à
medicina e à higiene”. Desde cedo se interessou por problemas de Saúde Pública
e Estatística. Logo após a formatura foi designado assistente de Estatística da
Escola de Sociologia e Política (1933-1946) e em 1940, após concursos de
títulos e de provas, foi nomeado Professor Catedrático de Higiene da Escola
Paulista de Medicina e, depois, em 1946, da Faculdade de Farmácia e Odontologia
da Universidade de São Paulo. Aposentado em ambos os cargos continuou a
trabalhar ativamente. Foi Secretário de Saúde no Governo Abreu Sodré
(1967-1970) e voltou a ocupar esse cargo na década de 1970.
Em mais de 40 anos
de atividades Leser atingiu objetivos em benefício da coletividade. Foi
laureado com o prêmio Antenor Consoni, pela Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto. Foi considerado um professor universitário estudioso e culto. Acreditava
no valor da ciência e da cultura como instrumentos de desenvolvimento e
bem-estar da sociedade.
Foi um dos
pioneiros na introdução da Medicina Preventiva nas escolas médicas do Brasil.
Em 1955, no Seminário de Viña del Mar, patrocinado pela Organização
Pan-Americana de Saúde, apresentou relatório reformulando o Curso Médico e
sugerindo a transformação da antiga Cadeira de Higiene em Departamento de
Medicina Preventiva. Seu relatório, nessa reunião internacional sobre ensino
médico, foi amplamente aprovado e trouxe como resultado a introdução de novos
conceitos no campo do ensino médico.
Para desenvolver
um programa pioneiro de trabalho que obedecesse às diretrizes fixadas no
Seminário de Viña del Mar, foi imediatamente criado na Escola Paulista de
Medicina o Departamento e Instituto de Medicina Preventiva (IMPEP), do qual foi
diretor desde sua instalação, em 1956.
O principal
objetivo dessa então nova estrutura curricular foi educar o futuro médico não
só para uma medicina curativa, mas também para a medicina preventiva. Essa
atividade de ensino médico era realizada junto ao paciente e seu domicílio.
Desta forma, o estudante entrava em contato com problemas médicos e sanitários
que afetavam a pessoa, sua família e sua comunidade.
Leser participou
ainda do Grupo de Estudos em Educação Médica que delineou novo modelo
educacional para a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília,
então uma nova Universidade em uma nova cidade.
A formação do
Centro de Seleção de Candidatos a Escolas Superiores (CESCEM) e a organização
da Fundação Carlos Chagas, em 1964, estiveram intimamente ligadas ao nome do
Prof. Leser, que foi um de seus fundadores. Para essa nova organização, trouxe,
além de seu esforço pessoal, as ideias e a experiência adquirida em atividades
precursoras na EPM. A nova metodologia de seleção através de provas objetivas e
a nova concepção das funções do exame vestibular já vinham sendo por ele empregadas
na EPM.
Dessa tarefa
surgiu a Fundação Carlos Chagas, que daí ampliou sua ação a outros setores, bem
como influenciou a origem de outras estruturas similares.
Ao assumir, em
1967, pela primeira vez, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, o Prof.
Leser encontrou uma organização extremamente defeituosa, resultante da simples
reunião de órgãos que, em 1947, foram destacados da antiga Secretaria da Educação
e Saúde Pública, com grande carência de técnicos. Com a colaboração de pessoas
de reconhecida capacidade, recuperou, em muitos setores, o atraso da Saúde
Pública em nosso estado, enquanto, em outros, estabelecia bases firmes para o
avanço técnico e científico e a adoção de medidas então modernas e inovadoras.
Ao lado da
implantação da reforma administrativa, estabeleceu critérios para preenchimento
de cargos de chefia e criou a carreira de Sanitarista, aguardada há mais de
quarenta anos. Atividades até então subestimadas, como a formação e
adestramento de pessoal, tiveram novo alento com a reaproximação que exigiu e
realizou com os estabelecimentos de Ensino Superior, especialmente com a
Faculdade de Saúde Pública.
Instituiu a “Caderneta
de Vacinações”, desde então em pleno uso, e as “Normas ´para o Programa de
Vacinações”. Criou condições para estabelecer um registro sistemático dessa
atividade, capazes de fornecer elementos essenciais para finalidades educacionais,
bem como para orientar, tecnicamente, a aplicação de cada vacina.
Introduziu experimentalmente,
em fins de 1967, a vacinação contra o sarampo – então uma endemia responsável pelo
maior número de mortes de crianças paulistas, colocando a vacina nos trabalhos
rotineiros da Unidades Sanitárias em 1969.
Outras tantas
providências vindas de sua atuação poderiam ser citadas. Convênios com a
Faculdade de Saúde Pública e com a Fundação Getúlio Vargas, para a realização
de cursos regulares de formação do pessoal da Secretaria da Saúde. Padronização
de medicamentos. Critérios para internação e alta em hospitais. Normas técnicas
para coleta e registro de dados epidemiológicos. Normas para imunização. Normas
para tratamento de tuberculose e hanseníase.
Entre seus trabalhos,
alguns podem ser destacados. “Contribuição para o estudo dos métodos
estatísticos aplicáveis à medicina e à higiene”, Tese, São Paulo, 1933. “Metodologia
Estatística”, em colaboração com Dr. Pedro Egídio de Carvalho, 2 volumes, São
Paulo, 1936 e 1938, Edição do Departamento de Cultura da Prefeitura de São
Paulo. “Sobre o emprego dos testes de escolaridade na Escola Paulista de Medicina”,
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 8:53, 1946 (em colaboração com o Dr.
Hélio Lourenço de Oliveira). “Modificação do sistema dos exames de admissão às
escolas superiores”, Revista da Associação Médica Brasileira, 2: 422-433, 1956.
“Considerações gerais sobre a seleção de candidatos à Matrícula nas Escolas
Médicas”, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 37: 54, 1962. “Exame
conjunto para seleção de candidatos a escolas de currículo biológico”, Ciência
e Cultura, 16: 354, 1964. “Considerações sobre a vacinação contra o sarampo”,
Medicina e Cultura, São Paulo, 26: 69-73, 1971. “Relacionamento de certas
características populacionais com a mortalidade no Município de São Paulo de
1950 a 1970”, Problemas Brasileiros, 109: 17-33, 1972.
Para completar
esta biografia recorremos ao artigo “Um Sanitarista chamado Walter Leser” de
Mello e Bonfim, de 2015, publicado em Ciência e Saúde Coletiva, do qual vamos
mencionar alguns aspectos.
Conforme os autores, Leser foi influenciado em
sua carreira pelo fato de, em 1928, no vestibular para a Faculdade de Medicina
e Cirurgia de São Paulo, ter sido aprovado por ter usado de estratagemas
retóricos, pois em algumas questões não se sentia muito preparado. Na verdade,
além da deficiência do método, deve-se reconhecer que ele foi um hábil e
inteligente candidato em seu desempenho nessa prova.
Sendo pessoa com
aptidão e formação para entrar na Escola Politécnica, ele mesmo não soube
explicar como acabou escolhendo medicina. Percebendo que não podia lidar com a
incerteza diagnóstica na Clínica de então, inicialmente dedicou-se à Cirurgia.
Mas, a necessidade de dedicar-se a mais tempo de preparação e certa dificuldade
financeira, fizeram-no afastar-se dessa possibilidade. Ao necessitar de tese de
doutoramento, para se formar, procurou Geraldo de Paula Souza, no Instituto de
Hygiene de São Paulo. Foi então sugerido que escrevesse sobre “Estatística
Médica”, um campo então praticamente inexistente no Brasil. Aí começou a ser
forjado o “Leser autodidata”. O seu orientador chegou a lhe dizer: “na dúvida,
deite, reze e pense”. No fim, acabou dando certo e foi feita a marcante tese,
em 1933, “Contribuição para o estudo dos métodos estatísticos aplicáveis à
medicina e à higiene”.
A partir daí, o Dr.
Leser desenvolveu sua carreira em três áreas: laboratório de análises clínicas;
ensino; gestão em saúde.
Indicado por Paula
Souza, foi contratado como assistente do Departamento de Química Biológica da Faculdade
de Medicina, onde trabalhou com padrões de bioquímica sanguínea, iniciando
publicações. No ano seguinte foi convidado pelo Dr. Gastão Fleury para se
associar ao laboratório de análises clínicas.
Em 1955, participou
da criação do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), onde se
inscreveu com o número 0004. Convidado por Flamínio Fávero, participou da chapa
vencedora da primeira eleição para esse conselho.
Sobre sua carreira
docente, inicia-se em 1934. Paula Souza, que tinha participado da fundação da
Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, o indicou para dar aula
para a primeira turma como professor substituto de estatística, sendo logo
efetivado.
Em 1936, escreveu
com seu colega Pedro Egydio de Carvalho (neurologista que ele indicou para
assumir a vaga de estatística no Instituto de Hygiene) um livro de estatística
e dois volumes, editado pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo.
Em 1946, deixou a
Escola de Sociologia e Política para dedicar-se à EPM e à USP.
No início da
década de 1940, Paula Souza o indicou para a Cadeira de Higiene da EPM. A
aprovação definitiva exigiu grande preparação por dois anos, quando fez tese
sobre a presença de vitamina C na banana. Em sua banca estavam: Geraldo de
Paula Souza, Francisco Borges Vieira, Samuel Pessoa, Marcos Lindenberg, Pedro
de Alcântara Machado. Em 1942, tomou posse como catedrático de Higiene na EPM.
Em 1946, foi
convidado por professores, entre eles Zeferino Vaz, para prestar concurso na Faculdade
de Farmácia e Odontologia da USP, onde se esperava que ele ajudasse a modificar
a conflitante estrutura acadêmica da faculdade. Foi aprovado com tese sobre a vitamina
A.
Na EPM, além da Estatística
e da Epidemiologia, ele esteve à frente do novo currículo para a graduação. De
seus estudos epidemiológicos, causou impacto a relação entre a mortalidade
infantil em São Paulo, o poder aquisitivo, e o abastecimento de água entre 1950
e 1970. Editou um livro de Epidemiologia embasado em duas apostilas de
Estatística de 1973.
Em relação à EPM
mais especificamente, seus dois principais trabalhos foram a criação do
Departamento de Medicina Preventiva e suas propostas para modificação dos vestibulares.
O Departamento de Medicina
Preventiva surgiu em 1955, de uma Conferência da Organização Panamericana de
Saúde (OPAS), em Viña del Mar, no Chile. Apenas dois cursos enviaram estudos
solicitados sobre o campo de higiene, o que colocou o estudo de Walter Leser,
Jairo Ramos e Felício do Prado no centro do debate. As novas premissas da OPAS
para o ensino em medicina que foram colocados parecem ainda muito atuais: o
ensino da medicina geral; o cuidado individual, familiar e comunitário; a
introdução da visão de saúde no sistema de referências do médico, e orientação
de atividades práticas comunitárias. A partir daí, o Departamento de Medicina
Preventiva teve sua carga horária estendida para vários anos do currículo de
graduação, com aulas, visitas, seminários com convidados, assistência em ambulatório
geral dedicado ao ensino de prevenção clínica, discussões de história natural das
doenças e sua multicausalidade.
Em 1962, a
Fundação Rockfeller levou o Prof. Leser a visitar vários centros de medicina
preventiva dos Estados Unidos, incluindo Columbia, Harvard, Cornell. Ele gostou
especialmente da Western Reserve University, com um “currículo integral
vertical”, que ele havia defendido na EPM, na Associação Brasileira de Ensino
Médico (ABEM), e como consultor do curso da Universidade de Brasília.
Sempre com sua
preocupação a respeito dos critérios de avaliação no vestibular, ele aceitou
presidir a banca oral do vestibular de 1952 da EPM. Decepcionado com o modelo
adotado, levou essa questão à Congregação, que autorizou a realização de um
teste de inteligência no ano seguinte, sem que valesse nota. Feito o
vestibular, a aplicação de um teste adaptado do exército americano, permitiu-lhe
concluir que uma parcela dos aprovados não tinha grau de inteligência
necessário para fazer o curso de medicina. A partir daí, houve completa
remodelação do processo de admissão, que passou a ter testes específicos das
disciplinas, teste de inteligência e redação.
Em 1962, foi
convidado por Isaías Raw para reestruturar o vestibular de medicina da USP. Com
o aumento de cursos e de procura por vestibulares, levou-o a fundar o Centro de
Seleção de Candidatos às Escolas Médicas (CESCEM), o que influenciou a criação do
CESGRANRIO e depois da FUVEST. Com o CESCEM criou também a Fundação Carlos
Chagas.
Para a Secretaria
de Saúde do Governo Abreu Sodré, foi indicado por Jairo Ramos, já que ainda era
inexperiente em saúde pública. Seguidor da linha de Paula Souza, Leser não se
alinhava a clientelismos políticos, e assumiu a Secretaria em tempos difíceis.
Em 1947 acontecera o desmembramento da área da Saúde da Secretaria da Educação,
sendo criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Saúde Pública e Assistência
Social, supostamente em busca de organização e eficiência. Mas, até que Leser
assumisse na década de 1960, isso não ocorreu.
Dessa forma, em
1967, houve um decreto para reforma da administração pública. Foi então feito
do Centro de Saúde o eixo da organização sanitária e a carreira de médico sanitarista.
Foi criado o Instituto de Saúde de São Paulo para auxiliar na assistência e
avaliação de desempenho.
A prevenção foi
trazida para o primeiro plano. A erradicação da varíola proposta pela OMS levou
à vacinação em massa de 90% da população do estado entre 1968 e 1970. Foi instituído
o calendário vacinal, suas normas técnicas, a caderneta de vacinação. Houve a renovação
do Código Sanitário que remontava a 1918. Foram construídas instalações, comprados
medicamentos. Foi feita política de saúde mental, combate a endemias, criados
centros de saúde. Em Igaraçu do Tietê combateu a febre tifoide, o que levou a
ter nome de rua nessa cidade. Com seu colega de turma e professor da EPM,
Abrahão Rotberg, fez o termo lepra ser substituído oficialmente por hanseníase.
Mesmo sem ser
pessoa com envolvimento político, defendeu o grupo de sanitaristas de sua
secretaria frente ao governo militar, incluindo médicos com filiação à esquerda
como David Capistrano da Costa Filho e Pedro Dimitrov.
Em 1975, foi
convidado pelo governador Paulo Egydio Martins para voltar à Secretaria da Saúde.
Na primeira semana de trabalho, já enfrentou o hercúleo trabalho contra a
epidemia de meningite, até então censurada pela ditadura. Conseguiu a marca
impressionante de 10 milhões de pessoas vacinadas em 4 dias na Grande São Paulo,
com 95% de cobertura vacinal no Estado de São Paulo. No mesmo ano, no litoral,
teve que lidar com uma epidemia supostamente de uma forma de encefalite.
Trabalhou com a
melhora dos Centros de Saúde e a Revisão do Código Sanitário do Estado. Entre
1976 e 1978 conseguiu promover a efetivação de mais de 300 sanitaristas no
estado que ainda estava carente desses cargos, por meio da dinamização do curso
obrigatório para essa área. Carreira essa que foi extinta em 1987.
Walter Leser
faleceu em 2004, com 94 anos. Sua companheira, Dona Helena, faleceu com 100
anos. Seus passatempos eram xadrez e futebol. Alguns traços de sua
personalidade que são lembrados: exigência, austeridade, sobriedade e inteligência.
Ele foi uma pessoa moderna, ou como se costuma dizer, à frente de seu tempo. Acentuava
o seu autodidatismo, dizendo ser apenas “um tocador de ouvido”. Era visto mais
como o líder de um grupo do que realizava em conjunto, mais do que uma pessoa
que tivesse apenas seu nome no que fazia. No fim das contas, seu nome foi dado
à “Medalha de Honra e Mérito da Gestão Pública em Saúde” do governo paulista.
Um nome que acabou adquirindo sua própria aura mítica em Saúde Pública, com
respeito mesmo de seus adversários.
Fontes bibliográficas:
“Walter Sidney Pereira Leser”, por Magid Yunes in “A
Escola Paulista de Medicina – dados comemorativos de seu 40º aniversário (1933-1973)
e anotações recentes”. Organizado por José Ribeiro do Valle. Empresa Gráfica da
Revista dos Tribunais, 1977, pg. 229-232.
Mello, GA & Bonfim, JRA – Um sanitarista chamado Walter Leser.
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 20, n. 9, Sept. 2015.Acessível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232015000902749