sábado, 29 de outubro de 2016

Impressões sobre Lemos Torres – por um ex-aluno



     Em 11 de fevereiro de 1962, o jornal “O Estado de São Paulo” publicou o artigo de autoria do Dr. Paulo de Almeida Toledo, intitulado “Lemos Torres”. Nele, o Dr. Toledo escreve a respeito da época em que, quando estudante de medicina, conheceu Lemos Torres na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo:

     “Em 1930, ao entrar no quarto ano do curso médico, comecei a frequentar a enfermaria do prof. Rubião Meira, onde iniciei o meu preparo propedêutico sob a orientação de Jairo Ramos. Fiquei então conhecendo Lemos Torres”.
     “Era uma figura curiosa, que intrigava, atraia e intimidava um pouco. De estatura mediana, robusto corpo, andava então pelos 45 anos. Gostava de exercícios fortes, de equitação e ar livre e, sobretudo, do sol. O andar elástico, a mandíbula bem marcada, a cabeça alta, o olhar penetrante e direto dos olhos claros, davam-lhe um aspecto de força viril e de inconfundível personalidade. Nunca o vi de avental. Sempre muito bem vestido, rigorosamente escanhoado, de cabelos ruivos e crespos aparados rente, com um bigode estreito e horizontal que apenas atenuava a linha firme da boca, tinha o hábito, enquanto raciocinava ou falava, de agitar, rodando-a em torno do indicador da mão direita, a corrente de ouro das chaves. Só a deixava para escutar ou percutir os doentes. Porque então se esquecia de tudo o mais. Exigia rigoroso silêncio e atenção, pois a propedêutica era para ele como um ato religioso”.
     “A percussão, a palpação ou a ausculta ela as fazia com um ritual rigoroso em que os gestos eram os necessários e apenas os imprescindíveis para que na mais apurada técnica o exame físico fosse feito”.
     “A palpação das vísceras abdominais pela técnica de Haussmann, a inspeção torácica, a ausculta dos pulmões ou do coração sucediam-se com minúcia e ordem. Não eram admitidos saltos ou omissões e mais de uma vez o ouvi mencionar sua norma preferida de conduta médica: examinar o doente “comme une bette”. Bem entendido, sem ‘parti pris’, sem opinião pré-concebida, sem se deixar arrastar por impressões de primeira vista, sem procurar adivinhar diagnósticos, sem busca de efeitos teatrais, friamente, ponto por ponto. Só depois de completo o exame, pesados os dados positivos e indiscutíveis, deveria surgir o diagnóstico. Não como criação de um tino clínico divinatório, que negava, mas como resultante fatal de premissas rigorosamente estabelecidas”.
     “Hoje, que isto é corrente e que o raciocínio médico se enquadra em rigorosa sequência lógica, em que os alicerces são a química biológica e a fisiopatologia em bases matemáticas, nada encontramos de estranho nessa orientação”.
     “Naquela época, porém, a clínica em São Paulo guardava ainda restos da tendência estilística e um pouco fantasista que caracterizou a medicina dos princípios deste século no Brasil. Saíamos de uma época em que a cultura literária exercia forte influência na formação de todas as profissões de cunho intelectual e na qual vigorava ainda como reflexo da medicina francesa a formação predominantemente humanística dos nossos maiores espíritos médicos”.    
     “Lemos Torres, porém, pelo feitio natural de seu espírito avesso à literatura e à fantasia, devotando à matemática, à física e à propedêutica o culto que consagrava a todos os conhecimentos objetivos, representou no campo da cínica a maior e mais duradoura força de reação contra essas tendências ‘poéticas’. Trazendo dos métodos analíticos e de rígida disciplina de Rocha Faria, afeição positiva de seus conhecimentos, veio depois de um período de policlínica em Avaré instalar-se em São Paulo, onde, seguindo o caminho rigoroso que se traçara, entrou como assistente voluntário para o Laboratório de Anatomia do prof. Bovero. Essa orientação correspondia ao que veio depois a preconizar no ensino da propedêutica. Aprender as bases com exatidão e minúcia para aplicá-las posteriormente no exercício de uma propedêutica metódica, rigorosa e imparcial. Entrando para o ensino médico como 1º assistente da Clínica do Prof. Rubião Meira, começou desde logo  a por em prática esses processos, com essa orientação. E, dessa modesta posição de assistente, iniciou a mais fecunda ação modeladora sobre o pensamento médico em São Paulo e indiretamente no Brasil. Os discípulos, fervorosos, apaixonados, quase fanáticos, iconoclastas e irreverentes mesmo, não tolerando outras escolas ou outros mestres, surgiram logo. Cássio Vilaça, Jairo Ramos, Alípio Corrêa Netto, Barbosa Corrêa e muitos outros, que se orientaram depois não só para a clínica como para todas as especialidades, porque esses princípios são válidos e eficientes em todos os campos, foram homens que, formados e amadurecidos nessa orientação, fizeram por sua vez discípulos sem conta que se espalharam por todo o Brasil”.
     “No ensino da propedêutica torácica e na orientação científica do diagnóstico e tratamento das afecções cardíacas e pulmonares é que sua ação foi sempre mais evidente”.
     “Foi para os Estados Unidos, de onde trouxe para São Paulo as noções fundamentais de eletrocardiografia. Estou ainda a vê-lo de monóculo encravado no olho arguto, analisando aqueles primeiros traçados elétricos que eram para mim um mistério. Parece-me ainda vê-lo, também, na 5ª Medicina de Homens da Santa Casa, fazendo a propedêutica dos pequenos sinais pulmonares nos pobres tuberculosos que ali se amontoam, à espera da morte. Desse interesse nasceu o Hospital São Luís Gonzaga em Jaçanã, do qual Lemos Torres foi o primeiro diretor. Só esses dois aspectos são suficientes para consagrá-lo como um dos grandes vultos da Medicina Paulista. Sua ação no último decênio da vida, dos 48 aos 58 anos, quando morreu, como acredito que fosse seu desejo morrer, bruscamente, sem decadência, em pleno vigor físico e mental, está vinculado à criação, instalação e direção de uma grande Escola Médica, a Escola Paulista de Medicina, onde foi, enquanto vivo, uma figura de incontestável autoridade e prestígio, e onde o seu espírito é reverenciado ainda, como o de Arnaldo na Faculdade de Medicina que fundou”.
     “Sua ação foi predominantemente a ação direta da presença e de magnetismo pessoal. Sua grande força residia na firmeza e convicção de uma atitude positiva. Ninguém como ele escolhia e moldava vocações. O próprio rigor e aspereza do seu ensino já selecionava valores”.
     “Assim conseguiu quase que automaticamente agrupar em torno de sua figura original um punhado de discípulos, com os quais às vezes discutia em termos ásperos, mas para os quais “o Lemos” era algo de magnético e sobrenatural. Sob essa inspiração, valiosas teses de propedêutica se escreveram. Propedêutica dos derrames pleurais, de Jairo Ramos, propedêutica radiológica das dores lombares, de Cássio Villaça, são algumas entre muitas que revelam essa formação”.
     “Pouca coisa deixou escrita. Em relação à sua ação, poder-se-ia aplicar o preceito latino às avessas: ‘os escritos desaparecem, as palavras ficam’, porque as palavras no seu caso eram poucas e sucintas e apenas resumiam uma atitude nova, que perdurou. De tudo o que criou, o que mais ao vivo retrata a sua personalidade é o sinal que traz o seu nome – o abaulamento expiratório dos últimos espaços intercostais, como sinal de pequenos derrames pleurais – porque: para observá-lo era necessário colocar o doente em posição correta, numa determinada incidência de luz; era preciso colocar-se o médico em posição exata, buscando a incidência favorável dos raios luminosos com a atenção presa à parede torácica do paciente; era um sinal propedêutico puro qu significava apenas pequena coleção líquida dos seios costofrênicos, independentemente de sua significação clínica; resumiu-o em um pequeno trabalho escrito em poucas páginas”.
     “Sobre esse sinal muito se escreveu, muito se discutiu e muito se divagou. Sobre ele desenvolveu-se uma tese de doutoramento e em torno dele se agruparam os discípulos da propedêutica rigorosa e contra ele investiram os remanescentes dos velhos métodos, que punham um pouco em ridículo a obsessão semiótica minuciosa dos pequenos sinais”.
     “Passaram essas divergências e a medicina paulista entrou decisivamente na era científica para a qual já estava madura”.
     “Outras tendências, na mesma linha positiva, surgiram e, hoje, a bioquímica e a radiologia comandam a orientação clínica”.
     “Mas a figura de Lemos Torres permanecerá sempre na lembrança de seus discípulos e dos discípulos de seus discípulos, como a de um homem de personalidade invulgar, que na trajetória que se impôs, não conhecia obstáculos. Por isso, como é natural, teve desafetos, pois a certeza de suas afirmações irritava um pouco pela petulância e também pela arrogância das atitudes decorrentes”.  
     “Mas o número dos que o acompanharam foi imensamente maior, o valor de sua ação disciplinadora se irradiou largamente e Lemos Torres continua hoje tão vivo como nos tempos em que na 2ª Medicina de Homens, com um joelho sobre a cama dos doentes, girando a sua corrente de ouro e de monóculo encravado no olho, observava, rodeado pelos seus alunos, o abaulamento expiratório dos espaços intercostais, em busca de pequenos derrames da pleura”. 

sábado, 22 de outubro de 2016

Biografia de Lemos Torres


      Álvaro de Lemos Torres nasceu em 15 de abril de 1884 na cidade do Rio de Janeiro. Era filho de João Pereira de Lemos Torres e de Ermelinda Lousada Torres. Fez o Curso de Humanidades no Colégio Pedro II, então chamado Ginásio Nacional, onde se bacharelou em Ciências e Letras em 1902. A partir de concessão legal, em março de 1903 fez exame para uma vaga no segundo ano do Curso de Medicina da Faculdade do Rio de Janeiro, tendo sido aprovado. Assim, foi possível terminar seu curso em 1907[1].
     Como estudante, entre 1904 e 1907, foi interno de Clínica Médica do professor Rocha Faria.
     De 1908 a 1913 trabalhou em Avaré, no interior do Estado de São Paulo, onde foi Diretor Clínico da Santa Casa, prestando serviços nesse estabelecimento sem qualquer remuneração. Ainda em 1908 foi nomeado médico da Estrada de Ferro Sorocabana, da qual se demitiu em 13 de fevereiro de 1916.
     Em 1912, grassava em certas regiões do Estado de São Paulo uma forma epidêmica paravariólica identificada por Emílio Ribas como sendo uma forma de “alastrim” ou “milk pox”.  Torres foi indicado para debelar essa doença em Avaré. Dessa ação, resultou sua indicação por Emílio Ribas para dirigir o Posto da Comissão de Tracoma em Descalvado. No entanto, declinou desse convite[2].
     Em 1913, ao se apresentar ao Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, dizendo que queria fazer parte do corpo docente da Faculdade, ouviu do prof. Arnaldo: “Entre para um laboratório, trabalhe e mostre do que o senhor é capaz”[3]. Assim, entrou como assistente voluntário no Laboratório de Anatomia do Prof. Alfonso Bovero.
     Em 1914 também fez o serviço de preparador voluntário do setor de Parasitologia da Faculdade de Medicina de S. P.
     Em 18 de maio de 1914 substituiu interinamente o Dr. Dorival Camargo Penteado, assistente do Butantã. Nessa ocasião foi encarregado da Sorologia Anti-ofídica e da classificação das peças do Museu relativas à Parasitologia.
     Em 1915 foi também preparador voluntário do setor de Histologia da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
     Em 1916 entrou para o ensino médico como primeiro assistente do prof. Rubião Meira (Primeira Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina), na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Mais tarde, chefiou a Segunda Enfermaria de Medicina, onde exerceu a investigação e o ensino de maneira mais plena.
     Na gripe de 1918 dirigiu o hospital do Mackenzie College, criado e mantido pela União dos Pastores Evangélicos de S. Paulo, tendo como auxiliares os médicos da Comissão Rockfeller, professor Darling, Dr. Hydriche e Dr. W. Smillie. Sua ação, nessa ocasião, foi bastante elogiada pelo Dr. Artur Neiva, Diretor do Serviço Sanitário da Capital[4].
     Em 9 de fevereiro de 1919, por proposta do Diretor Clinico da Santa Casa de Misericórdia de S. Paulo, Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, foi nomeado Chefe da Quinta Enfermaria de Homens e Mulheres desse estabelecimento.
     De 1919 a 1921 esteve nos Estados Unidos com uma bolsa da Fundação Rockfeller de onde trouxe os fundamentos de eletrocardiografia.
     Em 1932, o Dr. Sinésio Rangel Pestana, então Diretor dos Hospitais da Santa Casa de S. Paulo, nomeou Lemos Torres para a Diretoria do Hospital São Luís Gonzaga, em Jaçanã.
     Lemos Torres criou o primeiro serviço de atendimento pré-natal em São Paulo, a pedido do Dr. Silvio Maia, diretor da Maternidade de S. Paulo e professor de Clínica Obstétrica. Torres atendeu a mesma solicitação feita pelo professor Raul Briquet na Faculdade de Medicina, quando este substituiu o Dr. Silvio Maia[5].
     Em 1933 participou da fundação da Escola Paulista de Medicina, cujo primeiro diretor foi o Dr. Octavio de Carvalho (que foi sucedido por Lemos Torres).
     Em 1934 foi eleito para o cargo de Presidente da Seção de Tisiologia da Associação Paulista de Medicina. Em 1936, por decreto do Presidente da República, foi nomeado como representante oficial do Brasil nos Congressos de Medicina Esportiva de Berlim e de Moléstias Internas de Wissbaden.
     Em 1938 assumiu a Diretoria da Escola Paulista de Medicina, função que exercia quando de sua morte em 18 de janeiro de 1942. O professor Lemos Torres fazia uma cavalgada pela Sociedade Hípica, na companhia do embaixador José Carlos de Macedo Soares, quando o cavalo tropeçou subitamente, levando o professor ao solo. Desta queda veio a falecer.  
    Era pessoa carismática que atraiu muitos discípulos e seguidores tanto na Faculdade de Medicina de S. Paulo como na Escola Paulista de Medicina, onde se tornou figura emblemática e fundamental para essa instituição tal como foi Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho para a Faculdade.
     Conforme texto do Prof. Dr. José Inácio Lobo, escrito para o livro comemorativo dos quarenta anos de fundação da Escola Paulista de Medicina[6]:
     “Lemos Torres foi um espírito eminentemente objetivo, que, no julgamento dos fatos, não se deixava dominar por preconceitos ou por motivos emocionais. Refutava as afirmações que entendia errôneas com a mesma sinceridade e com a mesma firmeza com que aceitava as objeções que lhe pareciam justas. O rigor da crítica por vezes desagradava o contendor, mas, a absoluta probidade mental com que exercia lhe grangeou o respeito e admiração dos seus discípulos e colegas”.
      Ainda conforme o Prof. Lobo, Lemos Torres “sempre deu extraordinária importância ao exame físico meticuloso do paciente, seguido de uma análise imparcial e ordenada dos dados colhidos”. Por isso, segundo o professor, ele também sempre se rebelou contra o conceito de “intuição clínica”, que dispensaria o ato de examinar bem o paciente e que ele considerava “uma espécie de impressionismo”.
     Ele também criticava o conceito de “entidade nosográfica”, como se a doença tivesse uma existência por si própria. Para ele o importante era considerar “o doente, sujeito a inúmeras e variadas influências e o diagnóstico será assim apenas a denominação a dar ao resultado dum exame concreto, muito embora não se ajuste exatamente a modelos pré-estabelecidos”.
     Assim, “ele infundia essas ideias em seus discípulos, além de estimular o espírito de crítica, o hábito da análise e o cumprimento dos deveres”.
     No Hospital de Tuberculose do Jaçanã, onde foi o primeiro Diretor, estabeleceu “um sistema de reuniões regulares para discussão de casos clínicos, avaliação dos dados evolutivos e estudo da literatura especializada”. Desse modo, “tornou-se o Hospital do Jaçanã uma verdadeira escola de Tisiologia em São Paulo”.
     “Esteve várias vezes nos Estados Unidos, inclusive como bolsista da Fundação Rockfeller, e mais tarde, na Europa, estagiando nos principais serviços de Cardiologia e Clínica Médica. Dentre os grandes nomes da medicina estrangeira com que efetivamente estudou e trabalhou há de citar-se os de White, Levine e Wilson nos Estados Unidos, o de Lewis na Inglaterra, e mais tarde, o de Volhard e Becker na Alemanha”.
     “Sem contar numerosos estudos pessoais sobre os assuntos de sua preferência, há que assinalar a descoberta que fez dum novo sinal de derrame pleural, que recebeu a designação de sinal de Lemos Torres”.
     “A sua objetividade, o seu rigor no julgamento não o impediam de ser, como de fato foi, um verdadeiro esteta, pois além de apreciador das artes, se dedicava à escultura, com resultados plásticos de invejável requinte”.  
     No dizer do Prof. Lobo, Lemos Torres foi o primeiro médico especializado em Cardiologia em nosso meio.  
     Com a criação da Escola Paulista de Medicina foi unanimemente escolhido para reger a Cadeira de Clínica Médica. Foi Diretor da mesma Escola de 1938 até sua morte em 1942.


[1] Arquivos do jornal “O Estado de São Paulo”: edição de 19 de janeiro de 1942.
[2] Idem.
[3] Silva, M. R. B. – Estratégias da Ciência: a História da Escola Paulista de Medicina (1933-1956). EDUSF, 2003.
[4] Arquivos do jornal “O Estado de São Paulo”: edição de 20 de fevereiro de 1942.  
[5][5] Idem.
[6] Lobo, J. I. in “A Escola Paulista de Medicina – dados comemorativos de seu 40º aniversário (1933-1973) e anotações recentes.” José Ribeiro do Valle. Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1977, pgs. 20-23.