Em 11 de fevereiro
de 1962, o jornal “O Estado de São Paulo” publicou o artigo de autoria do Dr.
Paulo de Almeida Toledo, intitulado “Lemos Torres”. Nele, o Dr. Toledo escreve
a respeito da época em que, quando estudante de medicina, conheceu Lemos Torres
na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo:
“Em 1930, ao entrar no quarto ano do curso
médico, comecei a frequentar a enfermaria do prof. Rubião Meira, onde iniciei o
meu preparo propedêutico sob a orientação de Jairo Ramos. Fiquei então
conhecendo Lemos Torres”.
“Era uma figura curiosa, que intrigava,
atraia e intimidava um pouco. De estatura mediana, robusto corpo, andava então
pelos 45 anos. Gostava de exercícios fortes, de equitação e ar livre e,
sobretudo, do sol. O andar elástico, a mandíbula bem marcada, a cabeça alta, o
olhar penetrante e direto dos olhos claros, davam-lhe um aspecto de força viril
e de inconfundível personalidade. Nunca o vi de avental. Sempre muito bem
vestido, rigorosamente escanhoado, de cabelos ruivos e crespos aparados rente,
com um bigode estreito e horizontal que apenas atenuava a linha firme da boca,
tinha o hábito, enquanto raciocinava ou falava, de agitar, rodando-a em torno
do indicador da mão direita, a corrente de ouro das chaves. Só a deixava para
escutar ou percutir os doentes. Porque então se esquecia de tudo o mais. Exigia
rigoroso silêncio e atenção, pois a propedêutica era para ele como um ato
religioso”.
“A percussão, a palpação ou a ausculta ela
as fazia com um ritual rigoroso em que os gestos eram os necessários e apenas
os imprescindíveis para que na mais apurada técnica o exame físico fosse feito”.
“A palpação das vísceras abdominais pela
técnica de Haussmann, a inspeção torácica, a ausculta dos pulmões ou do coração
sucediam-se com minúcia e ordem. Não eram admitidos saltos ou omissões e mais
de uma vez o ouvi mencionar sua norma preferida de conduta médica: examinar o
doente “comme une bette”. Bem entendido, sem ‘parti pris’, sem opinião
pré-concebida, sem se deixar arrastar por impressões de primeira vista, sem
procurar adivinhar diagnósticos, sem busca de efeitos teatrais, friamente,
ponto por ponto. Só depois de completo o exame, pesados os dados positivos e
indiscutíveis, deveria surgir o diagnóstico. Não como criação de um tino
clínico divinatório, que negava, mas como resultante fatal de premissas
rigorosamente estabelecidas”.
“Hoje, que isto é corrente e que o
raciocínio médico se enquadra em rigorosa sequência lógica, em que os alicerces
são a química biológica e a fisiopatologia em bases matemáticas, nada
encontramos de estranho nessa orientação”.
“Naquela época, porém, a clínica em São
Paulo guardava ainda restos da tendência estilística e um pouco fantasista que
caracterizou a medicina dos princípios deste século no Brasil. Saíamos de uma
época em que a cultura literária exercia forte influência na formação de todas
as profissões de cunho intelectual e na qual vigorava ainda como reflexo da
medicina francesa a formação predominantemente humanística dos nossos maiores
espíritos médicos”.
“Lemos Torres, porém, pelo feitio natural
de seu espírito avesso à literatura e à fantasia, devotando à matemática, à
física e à propedêutica o culto que consagrava a todos os conhecimentos
objetivos, representou no campo da cínica a maior e mais duradoura força de
reação contra essas tendências ‘poéticas’. Trazendo dos métodos analíticos e de
rígida disciplina de Rocha Faria, afeição positiva de seus conhecimentos, veio
depois de um período de policlínica em Avaré instalar-se em São Paulo, onde,
seguindo o caminho rigoroso que se traçara, entrou como assistente voluntário
para o Laboratório de Anatomia do prof. Bovero. Essa orientação correspondia ao
que veio depois a preconizar no ensino da propedêutica. Aprender as bases com
exatidão e minúcia para aplicá-las posteriormente no exercício de uma
propedêutica metódica, rigorosa e imparcial. Entrando para o ensino médico como
1º assistente da Clínica do Prof. Rubião Meira, começou desde logo a por em prática esses processos, com essa
orientação. E, dessa modesta posição de assistente, iniciou a mais fecunda ação
modeladora sobre o pensamento médico em São Paulo e indiretamente no Brasil. Os
discípulos, fervorosos, apaixonados, quase fanáticos, iconoclastas e
irreverentes mesmo, não tolerando outras escolas ou outros mestres, surgiram
logo. Cássio Vilaça, Jairo Ramos, Alípio Corrêa Netto, Barbosa Corrêa e muitos
outros, que se orientaram depois não só para a clínica como para todas as especialidades,
porque esses princípios são válidos e eficientes em todos os campos, foram
homens que, formados e amadurecidos nessa orientação, fizeram por sua vez
discípulos sem conta que se espalharam por todo o Brasil”.
“No ensino da propedêutica torácica e na
orientação científica do diagnóstico e tratamento das afecções cardíacas e
pulmonares é que sua ação foi sempre mais evidente”.
“Foi para os Estados Unidos, de onde
trouxe para São Paulo as noções fundamentais de eletrocardiografia. Estou ainda
a vê-lo de monóculo encravado no olho arguto, analisando aqueles primeiros
traçados elétricos que eram para mim um mistério. Parece-me ainda vê-lo,
também, na 5ª Medicina de Homens da Santa Casa, fazendo a propedêutica dos
pequenos sinais pulmonares nos pobres tuberculosos que ali se amontoam, à
espera da morte. Desse interesse nasceu o Hospital São Luís Gonzaga em Jaçanã,
do qual Lemos Torres foi o primeiro diretor. Só esses dois aspectos são
suficientes para consagrá-lo como um dos grandes vultos da Medicina Paulista.
Sua ação no último decênio da vida, dos 48 aos 58 anos, quando morreu, como
acredito que fosse seu desejo morrer, bruscamente, sem decadência, em pleno
vigor físico e mental, está vinculado à criação, instalação e direção de uma
grande Escola Médica, a Escola Paulista de Medicina, onde foi, enquanto vivo,
uma figura de incontestável autoridade e prestígio, e onde o seu espírito é reverenciado
ainda, como o de Arnaldo na Faculdade de Medicina que fundou”.
“Sua ação foi predominantemente a ação
direta da presença e de magnetismo pessoal. Sua grande força residia na firmeza
e convicção de uma atitude positiva. Ninguém como ele escolhia e moldava
vocações. O próprio rigor e aspereza do seu ensino já selecionava valores”.
“Assim conseguiu quase que automaticamente
agrupar em torno de sua figura original um punhado de discípulos, com os quais
às vezes discutia em termos ásperos, mas para os quais “o Lemos” era algo de
magnético e sobrenatural. Sob essa inspiração, valiosas teses de propedêutica
se escreveram. Propedêutica dos derrames pleurais, de Jairo Ramos, propedêutica
radiológica das dores lombares, de Cássio Villaça, são algumas entre muitas que
revelam essa formação”.
“Pouca coisa deixou escrita. Em relação à
sua ação, poder-se-ia aplicar o preceito latino às avessas: ‘os escritos
desaparecem, as palavras ficam’, porque as palavras no seu caso eram poucas e
sucintas e apenas resumiam uma atitude nova, que perdurou. De tudo o que criou,
o que mais ao vivo retrata a sua personalidade é o sinal que traz o seu nome –
o abaulamento expiratório dos últimos espaços intercostais, como sinal de
pequenos derrames pleurais – porque: para observá-lo era necessário colocar o
doente em posição correta, numa determinada incidência de luz; era preciso
colocar-se o médico em posição exata, buscando a incidência favorável dos raios
luminosos com a atenção presa à parede torácica do paciente; era um sinal
propedêutico puro qu significava apenas pequena coleção líquida dos seios
costofrênicos, independentemente de sua significação clínica; resumiu-o em um
pequeno trabalho escrito em poucas páginas”.
“Sobre esse sinal muito se escreveu, muito
se discutiu e muito se divagou. Sobre ele desenvolveu-se uma tese de
doutoramento e em torno dele se agruparam os discípulos da propedêutica
rigorosa e contra ele investiram os remanescentes dos velhos métodos, que
punham um pouco em ridículo a obsessão semiótica minuciosa dos pequenos sinais”.
“Passaram essas divergências e a medicina
paulista entrou decisivamente na era científica para a qual já estava madura”.
“Outras tendências, na mesma linha
positiva, surgiram e, hoje, a bioquímica e a radiologia comandam a orientação
clínica”.
“Mas a figura de Lemos Torres permanecerá
sempre na lembrança de seus discípulos e dos discípulos de seus discípulos,
como a de um homem de personalidade invulgar, que na trajetória que se impôs,
não conhecia obstáculos. Por isso, como é natural, teve desafetos, pois a
certeza de suas afirmações irritava um pouco pela petulância e também pela
arrogância das atitudes decorrentes”.
“Mas o número dos que o acompanharam foi
imensamente maior, o valor de sua ação disciplinadora se irradiou largamente e
Lemos Torres continua hoje tão vivo como nos tempos em que na 2ª Medicina de
Homens, com um joelho sobre a cama dos doentes, girando a sua corrente de ouro
e de monóculo encravado no olho, observava, rodeado pelos seus alunos, o
abaulamento expiratório dos espaços intercostais, em busca de pequenos derrames
da pleura”.
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