Artigo publicado em 1902, na Revista Medica de São Paulo,
páginas 210 a 213, reproduzido da Gazeta Medica da Bahia.
Autor do artigo: Dr. Juliano Moreira.
Substituto de Psiquiatria e Neurologia na Faculdade da Bahia.
[Observações: buscamos atualizar a escrita, mas mantivemos “Estado”
com E maiúscula, “Juquery” com “y” e os nomes das revistas sem o acento na
palavra “medica”.]
De há muito
habituado a louvar os progressos sanitários do Estado de São Paulo, sinto hoje
extraordinário júbilo em noticiar aos leitores da Gazeta Medica da Bahia,
a inauguração de mais um pavilhão do magnífico asilo-colônia de Alienados daquele
Estado. E já agora aproveito a oportunidade para publicar as boas impressões em
meu espírito deixadas pela visita que fiz àquele magnífico estabelecimento.
Pode-se aquilatar o
grau de aperfeiçoamento moral de um povo pelos cuidados que ele saiba dispensar
aos que têm o infortúnio de ensandecer. Terá este modo de pensar não somente
quem houver percorrido o mundo culto, mas ainda quem tiver, mesmo por leitura,
conhecimento dos desvelos com que tratam seus alienados os povos que evolvem. O
Estado de S. Paulo, que de há muito tem sabido marchar à frente da propaganda
pelo nosso progresso real, aderindo, pelo exemplo, a todas as ideias úteis em
matéria de higiene, soube também dar aos outros Estados, mesmo os mais ricos, a
lição sublime de levar a efeito a construção de um manicômio modelo. Pode por
conseguinte aquele Estado brasonar-se com o merecido foral de povo culto e
moralmente aperfeiçoado.
Tivessem muitos
outros departamentos do território nacional sabido melhor aproveitar as sobras
de seus fartos orçamentos em tempos mais prósperos e em vez de um Asilo-Colônia
teríamos muitos; mas nem todos os nossos homens de governo têm sabido olhar as
necessidades do país através do prisma pelo qual se têm orientado os patriotas
paulistas.
Ainda em 1894 o
falecido Dr. Cesário Motta, a quem tanto deve o Estado de S. Paulo, em seu
grande relatório escrevia: “A casa em que estão recolhidos os loucos torna-se
dia a dia mais insuficiente e imprópria pelo acúmulo de doentes”.
Depois transcrevia
o ofício enviado ao Dr. Secretário da Agricultura com o fim de obter da
respectiva repartição informações relativamente ao local mais apropriado à
construção de um novo Asilo para o que uma lei do Congresso Estadual já havia
dado autorização.
Uma comissão
composta de dois engenheiros e do Dr. Franco da Rocha já havia dado preferência,
entre diversos terrenos oferecidos ao Governo, a dois deles, um na Moóca e
outro em Juquery. O primeiro foi eliminado depois por não ter abundância de
água. A compra de uma cachoeira fez retardar as negociações do Juquery. E então
foi lembrado um outro local no Alto de Santana, perto da Serra da Cantareira.
Foi depois de novo
definitivamente preferido o terreno às margens do Juquery, que apresentava as
seguintes vantagens: estava situado a 55 minutos da Capital, perto de uma
estação de linha férrea por onde passam cerca de 14 trens diários, banhado pelo
rio Juquery, cuja água é potável e tem, a cerca de 2 léguas, uma queda com
força média de 100 cavalos para mover máquinas. Além disto, ao Estado oferecia gratuitamente
um generoso particular 10 alqueires de terra, sendo fácil a aquisição dos
terrenos circunvizinhos. Acrescendo a tudo isto a proximidade de Caieiras, onde
havia cal e pedra em abundância para as obras, não pode haver dúvidas sobre a
boa escolha dos terrenos em questão.
Em 1895, o nosso
distinto colega Dr. Franco da Rocha em seu “Ensaio de Estatística” do Hospício
de São Paulo descrevia ainda “as péssimas condições do velho edifício em que se
achavam os alienados”. O governo do Estado continuava com energia e boa vontade
a envidar esforços para resolver a questão.
Foram os
beneméritos presidentes Drs. José Alves de Cerqueira César e Bernardino de
Campos que, em boa hora, confiaram ao distinto alienista supracitado a escolha
do sistema de hospício a adotar. Pela primeira vez neste país deu-se
inteiramente ao médico alienista o direito de dizer quais princípios devem
orientar a construção de um manicômio, e, o que é mais, foi-lhe dada a missão
de ao lado do arquiteto pôr em prática estes princípios. E tão afortunada é aquela
terra que pode dispor de um arquiteto inteligente, o Dr. Ramos de Azevedo, a
quem o Dr. Franco da Rocha não poupa louvores pela alta competência que pôs em
prática para efetuar os preceitos salutares da higiene hospitalar ao serviço de
manicômios.
Em obediência à
decisão do Congresso Internacional dos Alienistas reunido em Paris em 1889, o
Dr. Franco da Rocha desde 1892 envidou esforços para que fosse fundado em S.
Paulo um Asilo-Colônia e não colônias agrícolas para alienados em pontos
diversos e distantes do território do Estado.
De fato, aquele
Congresso tinha aconselhado como preferíveis os asilos médico-agrícolas
compostos de um asilo central, cercado de estabelecimentos agrícolas sempre que
as circunstâncias o permitirem. Desde que não era absolutamente aproveitável o
velho hospício então existente, desde que a circunstância de não ter S. Paulo
ainda uma Faculdade Médica, não impunha a necessidade da criação de uma clínica
urbana, não vejo melhor alvitre que o aconselhado pelo Dr. Franco da Rocha.
Somente em fins de
1895 começou a edificação do projetado estabelecimento, em terrenos para cuja
escolha concorrera o alienista cujo nome tantas vezes tenho repetido.
A maior parte das
construções do hospício propriamente dito fizeram com que a colônia fosse concluída
antes dele e inaugurada a 18 de maio de 1898. Demais o acúmulo de doentes no
edifício do velho hospício impunha a inauguração da referida colônia.
Falarei, portanto,
primeiro da colônia, mesmo porque foi a parte que eu tive a fortuna de ver
completa, em plena atividade.
Ela está apenas a
1500 metros do hospício.
Em redor de uma
grande área central arborizada, de 100 metros sobre 70, agrupam-se 10 pavilhões
de que se compõe a colônia. Eles são pequenos e elegantes ainda que singelamente
construídos. Dispostos em duas filas de quatro pavilhões cada uma, estão destinados
aos enfermos.
Os dois restantes
são destinados a administração e economia: isto é, um foi depois destinado ao
médico auxiliar e outro à cozinha, dispensa, rouparia, etc.
Cada um dos oito
pavilhões tem uma sala de refeitório, 1 dormitório com 20 camas, 1 banheiro, 1
latrina e dois compartimentos ainda para um enfermeiro e um guarda.
Nos 8 pavilhões
destinados aos doentes pernoitavam 20 asilados em cada um deles, ao tempo da
minha visita ao Juquery. Meu distinto colega Dr. Franco da Rocha informou-me,
porém, que em caso de necessidade lá poderiam estar 25 pacientes, por isso que
se lhes tinha dado o conveniente excesso de cubagem.
Dentre os oito
pavilhões em que se alojam os pacientes, dois eram então destinados aos
inválidos por moléstias intercorrentes e, por isso, neles, em vez de um só
enfermeiro como em outros pavilhões, havia ainda um ajudante.
Dez empregados
fariam então o serviço dos oito pavilhões. Hoje os enfermos que necessitam de
um tratamento sério são mandados para o asilo de tratamento.
Dois empregados
cuidavam da rouparia, dispensa, feitura de barba, corte de cabelo, curativos de
feridas, etc. Dois outros faziam o serviço da cozinha e uma geria o serviço das
criações.
Os empregados
revezavam-se em turmas de 5 por semana para saírem com os que trabalham
acompanhando-os no serviço.
Por ocasião de minha
visita, a colônia tinha 160 asilados crônicos, dos quais muitos válidos
trabalhavam e auxiliavam o serviço sem que ninguém precisasse fiscalizá-los.
Alguns saem a
passeio completamente livres; voltam à hora da refeição e do recolher sem dar incômodo
ao pessoal.
A colônia colocada
sobre uma colina está rodeada de 170 hectares de terra que foram divididos em
duas partes: uma para criação de vacas leiteiras, galinhas, porcos, etc. A
outra destinada à agricultura, é regada pelo rio Juquery.
Tendo em vista as
condições do terreno, o Dr. F. da Rocha mandou plantar primeiro o que podia dar
mais pronto resultado: milho, aipim, batata, fumo, cana, etc.
Todos os detritos
do estabelecimento são aproveitados para a fertilização do solo destinado a ser
cultivado.
Ao tempo de minha
visita já ali havia uma roça com três alqueires de milho, um pomar com 480
árvores frutíferas, uma boa plantação de mandioca, e uma boa horta que provia
regularmente a cozinha do estabelecimento.
Os asilados em
serviço estão agrupados por turmas e são acompanhados por um dos empregados
segundo o número deles. Os empregados trabalham também, e não exercem pressão
sobre os enfermos, que só trabalham quando querem: jamais são obrigados a isso.
O trabalho deles é
de 6 a 7 horas intervaladas pelas de descanso.
Uma turma trabalha
na conservação da via térrea que serve ao asilo e à colônia; outra cuida do
estábulo, outra cultiva os cereais, outra cultiva o fumo e fabrica charutos
para os outros asilados, e assim por diante. O grupo que se ocupa da
horticultura vive em pavilhão separado dos outros e onde os enfermos gozam da
mais absoluta liberdade.
Os que trabalham,
logo que se erguem às 6 horas da manhã no verão tomam café simples e seguem
para o serviço; voltam às 8 para uma refeição ligeira composta de 200 gramas de
pão e uma caneca de 400 gramas de café.
Saem de novo às
9:30 h para o serviço e voltam ao meio-dia, quando recebem carne, arroz,
feijão, farinha, batatas, verduras.
Às 2 horas voltam
ao serviço. Às 4, mesmo no serviço, tomam uma ligeira refeição, composta de
aipim cozido ou batata doce, etc. Às 5:30 tomam chá com roscas de farinha de
trigo.
A maior parte dos
doentes asilados em Juquery, é provinda da classe de trabalhadores agrícolas. Não
pode haver dúvida que a ocupação preferível para eles era o trabalho no campo,
mesmo por ser o que exige menos esforço intelectual da parte do enfermo. Quem
quer que tenha visto os bons efeitos do trabalho em certa classe de alienados,
não poderá deixar de louvar a orientação que o Dr. F. da Rocha tem sabido dar à
colônia anexa ao Asilo de Juquery.
Ao tempo da minha
visita à magnífica fundação de meu distinto colega Dr. F. da Rocha, ainda não
estava inaugurado o Asilo de tratamento. Mas em companhia dele pude fazer um
juízo sobre a orientação científica que aquele estudioso alienista tinha dado à
construção da parte hospitalar do manicômio do Juquery.
Segundo as últimas
notícias dali recebidas, funcionam o pavilhão da administração, o da dispensa,
três pavilhões da seção de homens, uma enfermaria para moléstias intercorrentes
e um pavilhão destinado à hidroterapia.
Os pavilhões para
doentes que eu tive ocasião de ver em via de acabamento, eram divididos do
seguinte modo: um salão para refeitório, uma sala de conversação e recreio, 10
quartos para um ou dois enfermos, 2 dormitórios para 30 camas, quartos para
enfermeiros e um pátio onde passeiam os doentes.
Terminados os
trabalhos de construção, o excelente estabelecimento de S. Paulo constará de 12
pavilhões para doentes, sendo 8 para doentes comuns, 2 para isolamento e 2 para
os atingidos por moléstias intercorrentes; 1 pavilhão para administração, 1
para dispensa, 2 para hidroterapia e 1 para lavanderia.
Comportará então o
hospício 800 doentes e unido à colônia atingirá a 1000 o número de asilados no
Juquery.
Não sendo possível
fazer logo no Asilo-Colônia de Juquery uma instalação elétrica, faz-se a
iluminação a acetileno. Mais tarde, por certo far-se-á a referida instalação.
A distância entre
a estação da Estrada Inglesa e as várias dependências do Asilo-Colônia é
vencida por um pequeno ferro-carril de bitola estreita. Mais ou menos a meio
trajeto entre a referida estação e o hospício central está o elegante chalet
morada do diretor.
Malgrado minha
pouca simpatia pelos sistemas de construção de asilos em que os pavilhões são
grandes e para muitos doentes, assim como por aqueles em que os pavilhões são
iguais, por isso que ai resulta uma certa monotonia que não é sem
inconvenientes para certos espíritos, tenho a extraordinária satisfação de
assinalar aqui a magnífica impressão em mim causada pelo Asilo-Colônia de
Juquery.
A economia
resultante do sistema ali posto em prática, explica o tê-lo preferido o seu
distinto Diretor; de mais tive ocasião de vê-lo adotado em outras cidades
dispondo talvez de mais larguezas orçamentárias.
Terminada a
construção do hospício, se meu distinto colega Dr. Franco da Rocha lhe anexar
um laboratório anatomopatológico, um pequeno bacteriológico e um bioquímico,
dando-lhe o respectivo pessoal idôneo, se ainda se instalar ali um gabinete de
psicofisiologia, terá elevado o esplêndido estabelecimento que soube fundar à
altura dos mais perfeitos da Alemanha e da América do Norte.
Até hoje está muito acima dos três
toleráveis existentes em todo o vasto território nacional.
Faço votos muito
sinceros para que o Estado de S. Paulo saiba sempre avaliar devidamente o
enorme serviço que lhe prestou o distinto alienista que planejou e executou o excelente
Asilo-Colônia de Juquery.
Com o sábio
alienista francês Ritti e comigo, o Estado de S. Paulo deve estar convencido
que “sous la Direction de notre savant confrère, ce bel etablissement, dont il
est le créateur, rendra des services éminents et à la science et à l’humanité”.
Que os outros
Estados saibam colher no modo de proceder de S. Paulo o exemplo fecundo do que
se pode chamar servir bem a causa pública.
Antes de terminar
sou obrigado a agradecer ao meu distinto colega Dr. Franco da Rocha o
acolhimento afetuoso que me dispensou nas visitas que fiz ao velho e ao novo
hospício de S. Paulo.