terça-feira, 20 de novembro de 2018

“Semiologia Clínica”, pelo Prof. Carlos da Silva Lacaz


O Prof. Carlos da Silva Lacaz (1915-2002) publicou diversos textos no jornal Folha de São Paulo, por vários anos. Ele formou-se em 1940 pela FMUSP. Foi Professor Catedrático de Microbiologia e Imunologia da FMUSP, Professor Titular do Departamento de Medicina Tropical e Dermatologia da FMUSP. Fundador e Diretor do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, além de outros tantos títulos. Também se dedicou à Historiografia Médica.
Em 1976, por ocasião da publicação do livro “Semiotécnica da Observação Clínica”, da autoria do Prof. José Ramos Junior, o Prof. Carlos da Silva Lacaz publicou o texto a seguir no jornal Folha de São Paulo, com algumas características próprias da época e outras que têm atualidade. 

     Francisco de Castro, o grande clínico brasileiro, que escreveu também as mais belas páginas de filosofia médica, advertia no seu Tratado de Propedêutica do “modus faciendi” do exame do doente, referindo que nessa exploração, executada segundo regras idôneas, residia o segredo do seu êxito e a condição da sua prestabilidade.
     Mediante a observação dos processos investigativos, dos seus requisitos essenciais, das suas formalidades impreteríveis, amiúde alcança o clínico ver o invisível e palpar o insondável. É certo que entra nessa operação analítica, um pouco de aptidão ingênita do observador, um pouco desse produto do inconsciente que todos trazemos com a mais sólida camada da nossa organização psicológica. Numa época da nossa profissão em que o exame cuidadoso do doente está sendo relegado para um plano secundário, absorvidos os médicos de hoje com dezenas de exames laboratoriais, alguns de interpretação ainda discutida, é suavemente bom e agradável a leitura de um grande livro de Semiótica e que acaba de ser publicado pelo Prof. José Ramos Junior. Conheci o ilustre colega quando ainda acadêmico, na velha Santa Casa de São Paulo, orientado pelo seu mestre Prof. Jairo Ramos, no Serviço do Prof. Rubião Meira, de saudosa memória. Naquela época, o exame do doente era praticado com cuidados extremos, contando o médico com os poucos recursos laboratoriais da época. Mas, assim mesmo, a Medicina Paulista conheceu e viveu um período de real esplendor e progresso. A arte de examinar o doente foi sempre coisa sagrada na velha enfermaria do Prof. Rubião Meira. E, por isso, daquele Serviço saíram grandes expressões da nossa medicina, homens de trabalho e de disciplina, que se projetaram de modo definitivo no cenário da nossa profissão.
     José Ramos Junior tem sido, entre nós, um dos grandes cultores da observação clínica, mostrando que todo e qualquer exame subsidiário, ou seja, aquele que decorre da chamada propedêutica armada, é o será sempre, orientado e solicitado pelo raciocínio resultante da análise dos elementos propedêuticos fornecidos pela interpretação fisiopatológica dos sintomas e dos sinais. É lógico que essa análise interpretativa depende dos conhecimentos de fisiopatologia e de semiotécnica rigorosamente bem executada e que, quanto mais completa e minuciosa, maiores serão os elementos para os diagnósticos funcionais, anatômicos e etiopatológicos, bem como para o prognóstico e, principalmente para a conduta terapêutica adequada, formulada em bases científicas e seguras.
     Com a responsabilidade de professor, José Ramos Junior destacou no prefácio de seu belo trabalho – dois volumes publicados graças à benemerência do Fundo Editorial Procienx – os erros e os vícios que se vêm cometendo principalmente nos chamados institutos de previdência e outros semelhantes, onde muitas vezes os pacientes são tratados por números, não se estabelecendo como seria altamente recomendado um elo de simpatia entre o médico e o doente, elemento fundamental para o reatar de novas esperanças.
     Assim, as anamneses são compostas em estilo telegráfico, muitas vezes com um exame físico sumário e falho, porque o que se deseja nesses institutos é o número de consultas e não a sua qualidade.
     A massificação da assistência médica está transformando as observações clínicas em prontuários frios e inexpressivos, sem uma sequência inteligente dos seus acontecimentos, dos seus sintomas, do reconhecimento e da personalidade dos pacientes. Por sua vez, muitos colegas se impacientam com este tipo de atividade, tratando os seus doentes sem a merecida e necessária afetividade. Destaca ainda o Prof. José Ramos Junior, nesse verdadeiro Tratado de Propedêutica, ricamente ilustrado e nascido à beira do leito do enfermo, os erros do profissional quando examina um paciente, traduzidos muitas vezes pela ostentação, pelo desprezo e até pela falta de caridade, ou seja, com a crueldade dos prognósticos infaustos ditos face a face, revelando a ostentação de quem quer demonstrar a sua “sabedoria” ou superioridade.
     Este é um livro rico de ensinamentos que deverá estar na cabeceira de todo o estudante de Medicina que precisa aprender sua profissão no sentido integral e assim exercê-la.
     A observação clínica bem realizada, adequadamente composta pela semiotécnica, é a base fundamental dos diagnósticos anatômicos, funcionais e etiológicos e, consequentemente, de um racional e científico planejamento terapêutico.
     Bem haja o Prof. José Ramos Júnior pela publicação desse oportuno livro que irá exercer fecunda influência em todo o jovem que se prepara para cumprir a mais bela e mais humana de todas as profissões. O trabalho em foco demonstra que, muitas vezes, um exame clínico cuidadoso, sem qualquer exame laboratorial, possibilita ao clínico ver o invisível e palpar o insondável, na expressão do consagrado Francisco de Castro. A Medicina brasileira está de parabéns.

Fonte bibliográfica:
Lacaz, Carlos da Silva – Temas de Medicina – Biografias, Doenças e Problemas Sociais. Lemos Editorial, 1997, págs. 242-243.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Biografia do Prof. Dr. José Ignácio Lobo



A partir de texto de Gustavo Friozzi

     José Ignácio Lobo nasceu em São Paulo em 14 de fevereiro de 1900, filho de Jerônimo Álvares Lobo e Maria Eliza de Azevedo Lobo. Matriculou-se em 1912 no Colégio Arquidiocesano de São Paulo, onde fez o então Curso Ginasial, que concluiu em 1916.
     Após prestar exames em lugares como o Ginásio do Estado da Capital e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, decidiu-se por cursar esta última, onde graduou-se em 1923.
    A partir do fim do terceiro ano do Curso Médico, começou a frequentar, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, o Serviço de Clínica da Segunda Enfermaria de Mulheres, da qual era chefe o Dr. Ribeiro Almeida, tendo aí trabalhado sob a orientação do então assistente Dr. Raul Margarido. Ainda como aluno trabalhou nos postos de Profilaxia da Sífilis. No último ano do curso foi Interno do Hospital de Isolamento de São Paulo (depois Hospital Emílio Ribas). Foi presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Em seu doutoramento defendeu tese sobre “Menstruação e Corpo Lúteo”, sendo aprovado com distinção.
     Exerceu a Clínica inicialmente na cidade de Ourinhos, onde ficou até 1925. Nessa época ingressou no Serviço do Professor Rubião Meira, na Segunda Enfermaria de Homens da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Dessa forma, foi indicado pelo Prof. Meira para Assistente Extraordinário da Terceira Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, indicação essa renovada anualmente, sendo a última das quais em março de 1936, conforme o título da nomeação.
     Em julho de 1932, foi nomeado adjunto do Hospital São Luiz Gonzaga, em Jaçanã. Esse cargo foi logo interrompido, em virtude da Revolução Constitucionalista. Durante esta, não pode prestar serviços médicos nem no Hospital Central da Santa Casa, nem em outro hospital, por ter-se incorporado às forças paulistas em operação no Setor Sul. De regresso, reassumiu suas funções na Santa Casa e no Hospital São Luiz Gonzaga.
     Em 1933, José Ignácio Lobo participou da fundação da Escola Paulista de Medicina, onde tornou-se Professor Catedrático de Clínica Médica.
     Em maio de 1936, foi aprovado em concurso para Livre Docente de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de São Paulo. Continuou a auxiliar o curso prático da Terceira Cadeira de Clínica Médica, e trabalhando na Segunda Enfermaria de Medicina de Homens da Santa Casa de São Paulo até outubro de 1938. Na ocasião, a convite do Prof. Ribeiro de Almeida, passou a trabalhar na Segunda Enfermaria de Medicina de Mulheres da Santa Casa, onde permaneceu até meados de 1944.
     Em 1943, teve revalidado seu título de Livre Docente de Clínica Médica pela Congregação da Faculdade de Medicina de São Paulo, mediante novo concurso de títulos, conforme ordenava a Lei.
     Em novembro de 1945, foi transferido do cargo de adjunto efetivo do Hospital São Luiz Gonzaga para cargo similar na Santa Casa. Em maio de 1946, foi promovido a Chefe de Clínica da Segunda Enfermaria de Medicina de Homens da Santa Casa. Exerceu essa Chefia até 1953, quando solicitou exoneração do cargo. A Mesa Administrativa da Irmandade conferiu-lhe, em maio de 1955, o título de Médico Emérito, em reconhecimento a serviços prestados.
     O Prof. Lobo foi pioneiro e precursor de estudos endocrinológicos em São Paulo, juntamente com Thales Martins. Com a supressão do serviço de Endocrinologia do Instituto Butantã, houve a transferência do pessoal e do arquivo de casos para a Escola Paulista de Medicina, concomitantemente à criação da Disciplina de Endocrinologia no recém-criado Departamento de Medicina pelo Prof. Jairo Ramos, que indicou, e foi aprovado pela Congregação, o Dr. Lobo. Conforme Gustavo Friozzi, concomitantemente foi criada a Disciplina de Moléstias Infecciosas. O Prof. Lobo aposentou-se na EPM em 1968.
     Participou várias vezes do antigo Conselho Técnico Administrativo da EPM, mesmo após se aposentar. Assim também do Conselho Deliberativo da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, mantenedora do Hospital São Paulo.
     Foi membro de várias bancas examinadoras em concursos de professores e docentes. Publicou mais de 200 trabalhos, entre teses, monografias e artigos científicos. Mesmo após aposentado exerceu, em comissão, o cargo de Assistente Técnico da Coordenadoria dos Serviços Técnicos Especializados da Secretaria da Saúde.
     Nas palavras de Gustavo Friozzi:
     “Durante o tempo que trabalhamos com o Dr. Lobo, pudemos verificar a vivacidade de sua inteligência e a profundeza de sua cultura. Chegava à Enfermaria lá pelas dez horas e passava em revista todos os leitos (33), orientando a terapêutica ou ajudando a esclarecer o diagnóstico. Tendo sido convidado a dirigir o Departamento Científico da Laborterápica, teria podido, como o fazem muitos, aparecer de vez em quando na Enfermaria e manter-se chefe titular. Mas o caráter de José Ignácio Lobo não permitia tal rasgo à sua concepção do dever. Não podendo dar, como queria, a assistência e a atenção que seu cargo requeria, preferiu demitir-se, a manter-se como titular figurativo. Foi uma pena. Perdeu a Santa Casa um grande clínico e eu um grande mestre e amigo”.
     Continua Gustavo Friozzi:
     “Novamente a Enfermaria foi posta em concurso, vencendo-o o Dr. Ulysses Lemos Torres, digno substituto de Ignácio Lobo e continuador da grande obra de seu pai, o falecido Prof. Lemos Torres, introdutor da semiótica médica em nosso meio, que muito contribuiu para formar grandes clínicos como: Jairo Ramos, L. Decourt, J. Lobo, Ulhôa Cintra, B. Tranchesi e outros”.
     Sobre o Prof. Lobo, diz ainda Gustavo Friozzi, em publicação de 1977:
     “De estatura mediana, esguio, com farta cabeleira grisalha, sempre elegantemente trajado, o Dr. Lobo lembra a figura dos médicos ingleses descritos por Cronin. Patriarca “ancien stile”, é o pai de 10 filhos”.   
     No jornal O Estado de São Paulo de  7 de fevereiro de 1994 lê-se nota de falecimento do Prof. José Ignácio Lobo, com 94 anos. o jornal acrescenta que, em setembro de 1963, na sessão solene da congregação da Escola Paulista de Medicina, comemorativa dos 30 anos de fundação da Escola, pronunciou longa oração, quando destacou: “tem sido de fato uma constante desta Escola, a preocupação com os métodos de ensino, com a técnica do ensino, com a ciência do ensino”. E aos alunos disse: “para usar uma linguagem estudantil, dir-vos-ei agora, nesta festa trintenária, que a 'escolinha' dos vossos antecessores se tornou a 'Paulista' de nossos dias, guardai bem e defendei melhor, este nome, assim no que ele exprime de transmutação dos conceitos, como no que ele significa de tradição gentílica. Guardai-o com a alegria da mocidade, com a altivez de homens livres e com a dignidade que a Providência Divina, a quem rendemos graças, imprimiu em cada um de nós”.
     Continuando a notícia, o Prof. José Ignácio Lobo era filho do Sr. Gerônimo Alves Lobo e de d. Maria Elisa Lobo, falecidos. Era casado com d. Maria Rita Lobo. Deixa os filhos, Marcelo Lobo, casado com d. Lucila Figueiredo Lobo; Guilherme Lobo, casado com d. Elisabeth Lobo; Maria Claúdia Lobo; Maria Ercília Lobo; Maria Gilda Lobo; d. Elisabeth Lobo Brennan, casada com Laurence Brennan; d. Heloisa Lobo Teixeira da Silva, casada com o sr. Luiz Teixeira da Silva; Jorge Garcez Lobo, casado com d. Regina Lobo; Flávia Lobo, solteira, e Rogério Lobo, solteiro. Deixa ainda netos e bisnetos. O enterro realizou-se no dia 5, às 12 horas, no Cemitério Gethsemani.   

Fonte bibliográficas: 
Friozzi, Gustavo – José Ignácio Lobo in A Escola Paulista de Medicina – Dados Comemorativos de seu 40º Aniversário (1933-1973) e Anotações Recentes. Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1977, págs. 104-107.
Acervo do jornal O Estado de São Paulo.